Quando Gerta desembarcou no Porto de Santos desejava apenas uma coisa: esquecer o passado. Em fuga, deixava para trás sua amada pátria, a Alemanha, completamente destruída pelos horrores da segunda guerra mundial.
A fim de desconectar-se do passado e, valendo-se da fluência no idioma francês, adotou uma nova identidade e uma outra nacionalidade. Em sua nova vida em terras brasileiras, Gerta seria conhecida como Bernardette, a governanta francesa.
A convite de uma amiga, poucos dias depois, chegou à cidade de São Paulo. Lá fixou residência, trocando definitivamente as missas na Marienkirche, a igreja de Santa Maria em Dortmund, sua cidade natal, pelas realizadas na Igreja de Santa Cecília.
Com o auxílio da amiga, logo conseguiu um emprego trabalhando como governanta na casa de uma abastada família no bairro do Bom Retiro.
Os patrões não se importaram com o fato de Bernardette não saber falar quase nada em português, muito pelo contrário. Oriundos da Europa, desejavam que os filhos melhorassem a pronúncia, o vocabulário, e obtivessem fluência no idioma de Molière e Victor Hugo.
Porém, para surpresa de Gerta, ela logo percebeu estar em meio a uma família judaica e, naquele momento, agradeceu o fato de seu nome e sua procedência falsa não levantarem quaisquer suspeitas. Mesmo assim, isso a perturbava. O que os patrões pensariam caso soubessem que confiaram a uma alemã a guarda da casa e a educação dos filhos?
Gerta não parecia ter dúvidas sobre o seu destino. Face aos recentes acontecimentos na Europa, os patrões certamente a expulsariam da casa e, uma vez desvendada a sua farsa, onde mais poderia obter outro emprego?
Durante meses, anos, Gerta alimentou esperanças de reunir uma quantia de dinheiro que a permitisse retornar ao seu país e retomar sua vida.
E assim ela fez. Após 14 anos de trabalho naquele lar, Gerta já possuía dinheiro bastante para voltar à Alemanha e lá, abrir seu próprio negócio, dedicando-se ao que mais gostava de fazer: bolos, doces e tortas.
Contudo, Gerta, não podia abandonar aquela família e aquela casa apressadamente. Havia se apegado às crianças, agora já crescidas, e a bondade e respeito com que sempre foi tratada não era algo que podia desprezar.
Então Gerta, usando parte de suas economias, preparou para aqueles que aprendeu a amar uma ceia de despedida. Ela esmerou-se no preparo das saladas, assados e grelhados e, claro, reservou a surpresa para o final: as sobremesas, sua especialidade.
A família surpreendeu-se com o evento e com o requintado bom gosto dos pratos. Mas renderam-se aos sabores das finas sobremesas cuidadosamente preparadas por aquela que elas chamavam carinhosamente de "Dette".
Ao final da refeição, comovido, o patriarca da família, Sr. Absalom, ergueu-se e agradeceu a ceia, bem como os anos de extrema dedicação de Bernardette à sua família.
Dona Esther e as crianças, Miriam e Laila, choravam e abraçavam Bernardette, quando o Sr. Absalom anunciou que gostaria de entregar uma lembrança à dedicada governanta, algo que ela pudesse sempre recordar o quanto era querida pela aquela família.
Então ele entregou a ela uma caixinha de veludo roxo. Do interior da mesma, Bernardette retirou um lindo relicário em ouro, em forma de pingente, com uma correntinha do mesmo material. Abrindo-o Bernardette pode ver em uma das faces uma foto de toda a família Weismann e na outra uma inscrição: "Gerta, jamais te esqueceremos !"
O sangue desapareceu das faces de Bernardette e um arrepio gelado percorreu seu corpo.
As pernas pareciam não ter mais condições de suportar o peso de seu corpo que, envolto pelo temor, encontrava-se completamente paralisado.
Segundos intermináveis se passaram, cada um abrigando milhões de pensamentos em sua mente, até que Bernardette pudesse, lentamente retomando o controle de seu corpo, voltar seu rosto para a direção do Sr. Absalom.
Os olhos do patriarca fitaram os seus, envergonhando-a ainda mais. Bernardette sentia o chão sumir sob os seu pés.
Foi quando uma mão, terna, pousou sobre a sua. Era a mão de Dona Esther e, logo suas palavras se fizeram ouvir:
- "Nós sempre soubemos seu verdadeiro nome e de onde você veio. Não entendíamos porque desejava ser chamada por outro nome, mas aceitamos. Porém, muito mais surpresos ficamos em ver como você realmente amava as pequeninas e, ainda, como Miriam e Laila rapidamente, se afeiçoaram a você."
- "Mas vocês deveriam sentir ódio de mim e de meu povo..." - murmurou Gerta.
- "Não, Gerta, ou Bernardette, não sei como chamá-la..." - interrompeu o Sr. Absalom.
- "Me chame de Gerta, senhor."
- "Pois bem, Gerta, veja o relicário que te dei. Antes de abri-lo você poderia tomá-lo por um relicário qualquer, igual a muitos outros que se encontram nas vitrines das lojas. Mas quando o fez descobriu que ele era único e especial."
- "Sim, senhor Absalom, ele é especial." - e o patriarca continuou:
- "É nós somos como ele. Por fora somos todos iguais, sem distinção. Mas por dentro possuímos um coração repleto de emoções, boas ou más, que permanecem ocultas."
E após alguns segundos ele retomou:
- "Há 15 anos atrás, para nós, Gerta, você era apenas mais uma jovem alemã, refugiada de guerra, e poderíamos temê-la e ter recusado seus serviços apenas por esse aspecto. Mas, preferimos julgá-la apenas depois de conhecer o seu coração, o seu interior. E não nos arrependemos! Veja quanto do seu amor e de sua dedicação teríamos perdido por nos deixar levar apenas pelas impressões exteriores."
Gerta soluçava e não mais conseguia reter as lágrimas que lhe percorriam as faces.
E então, o Sr. Absalom concluiu:
- "Não podemos medir um homem pela sua fortuna ou pela sua posição social, a medida de um homem é a medida de seu coração".
E uma luz de amor brilhou naquela casa.
São Paulo, maio de 2008