A família não conseguiu impedir que certa vez Gilberto e mais um quatro meninos do bairro construíssem uma casa de madeira na árvore. Nem tampouco pode impedi-lo quando ele decidiu plantar vários pés de couve-de-bruxelas no antigo canteiro reservado às rosas.
Porém, nos últimos meses Gilberto andava muito estranho. Vivia calado, pelos cantos da casa, pensativo, não raro carregando uma desgastada Bíblia e, diferentemente de muitos que gostam de apenas portá-las, Gilberto passava horas lendo o seu conteúdo.
A surpresa veio naquela manhã de quinta-feira. Ao chegar para o trabalho Crescência deparou-se com o Sr. Gilberto na sala, desencaixotando a árvore e os enfeites de Natal que ficavam o ano todo guardados no sótão.
Crescência, então, telefonou para neta do patrão e este pode ouvir parte do diálogo:
- "Dona Rosângela, seu avô tomou os remédios dele hoje de manhã?"
...
- "Tomou? Bem, porque eu acho que ele endoidou de vez. Imagine a senhora que ele está lá na sala, montando o presépio e a velha árvore de Natal".
....
- "Eu sei, Dona Rosângela, ainda estamos junho. Faltam mais de 6 meses para o Natal. Eu sei, Dona Rosângela, eu sei, o seu avô é que não sabe mais nem que dia é hoje."
Sob a orientação da neta, Crescência passou o dia fingindo não ver e nem se importar com a frenética atividade que Gilberto desenvolvia na sala.
Quando Rosângela voltou para casa, um pouco mais cedo que o habitual, dada as circunstâncias, certificou-se do relato. Lá estava a velha árvore, majestosa, ocupando o lugar sempre antes destinado a ela no Natal. O Sr. Gilberto não economizou nos detalhes, usando bolinhas, enfeites, fitas, guirlandas, tudo encimado por uma estrela dourada.
Rosângela não mais se lembrava da última vez que havia visto aquela árvore montada. Desde o falecimento de sua avó, há mais de 15 anos, Gilberto evitava toda forma de comemoração natalina. Ela não sabia o que dizer, quando ele a interpelou, apontando para a árvore:
- "E então, gostou ?"
- "Anhh...sim, vovô, claro! Ela é muito linda. Mas, por que o senhor montou essa árvore hoje?"
- "Ora, para comemorar o Natal." - respondeu com tranqüilidade o avô.
- "Natal, vovô ?? - replicou a neta sem paciência - Natal ?! Nós estamos em junho! Em junho!! Faltam 6 meses para o Natal!! Entendeu?"
- "Claro, entendi. Você é que ainda não entendeu"
Rosângela emudeceu. Mesmo achando que as palavras do avô vinham de um mundo de sonhos e imaginação, ela resolveu ouvi-las.
Assim, entusiasmado com a oportunidade, Gilberto pôs-se a explicar.
Disse que há meses meditava sobre o assunto e que havia descoberto ser errado comemorar-se o Natal em dezembro. Aquele Natal do dia 25 de dezembro, afirmava, era uma grande farsa e deveria ser banido.
- "Mas vovô" - questionou Rosângela - "de onde o senhor tirou essa idéia?"
- "Daqui" - indicou 'seu' Gilberto, apontando para a Bíblia.
Rosângela meneou a cabeça. Enfim, talvez Dona Crescência tivesse razão: Vovô ficou louco!
Mas ele continuou seu discurso. Disse que o Natal representava o nascimento de Jesus. Mas Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro, nem tampouco nasceu em Belém.
- "Quer ver ??" - perguntou. E pôs-se a exemplificar:
Para Saulo, informou Gilberto, Jesus nasceu em uma estrada empoeirada de Damasco quando o velho Saulo morreu e ele se tornou Paulo de Tarso.
Para Maria de Magdala, Jesus nasceu em Bethânia quando a voz de pureza do Mestre despertou nela a sensação de uma vida nova.
Para João Batista, Jesus nasceu às margens do rio Jordão, sob a luz do espírito santo, quando João teve a honra de batizá-lo.
Para Pedro, o pescador, Jesus nasceu à noite, depois de o galo ter cantado pela terceira vez e depois de Pedro ter acordado para sua verdadeira missão.
Para Zaqueu, o publicano, Jesus nasceu em Jericó, quando ele estava em cima de uma árvore e recebeu a proposta honrosa de receber o Mestre em sua casa.
Para o apóstolo Tomé, Jesus nasceu em Jerusalém, naquele dia em que ele, incrédulo, pode testemunhar a morte não tinha poder sobre o Filho de Deus.
Para Dimas, o ladrão arrependido, Jesus nasceu em uma cruz, no alto do Calvário, quando ele pelo Divino Salvador foi perdoado.
- "Vês, minha neta? Para muitas pessoas Jesus não nasceu em Belém, nem em dezembro, nem em uma manjedoura." - concluiu o ancião - "Pouco importa quando, onde e como Jesus tenha nascido. O que importa é quando o deixamos habitar nosso coração. Quando o deixamos transformar nossa vida."
Rosângela ouvia tudo com atenção, não contendo algumas lágrimas que insistiam em rolar de seu rosto.
- "Rosângela, você está chorando. Você está com algum problema?" - perguntou o avô.
- "Não vovô, eu estou apenas emocionada. É que hoje Jesus nasceu."
Rosângela ouvia tudo com atenção, não contendo algumas lágrimas que insistiam em rolar de seu rosto.
- "Rosângela, você está chorando. Você está com algum problema?" - perguntou o avô.
- "Não vovô, eu estou apenas emocionada. É que hoje Jesus nasceu."
São Paulo, junho de 2008
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